segunda-feira, 18 de novembro de 2019

A longa pescaria

Desde muito cedo eu já era fascinado por barcos, em especial, é claro, por veleiros. Mas qualquer coisa relacionada ao assunto me despertava interesse. Com o tempo fui experimentando várias delas: vela, lancha, surf, esqui aquático, pesca de cais, pesca oceânica, mergulho… ficava na beira do cais do clube esperando um convite para uma saída de barco, preferencialmente num veleiro, mas podia ter alguém querendo praticar esqui aquático precisando de um piloto para a lancha, alguém para remar um bote até sei lá aonde… Eu estava ali disponível para o que der e viesse.


Com este espírito participei de uns campeonatos de pesca de oceano na lancha Penélope do ICB. Naquela época os peixes eram embarcados e levados para pesar no fim do dia. Muitos peixes enormes. Marlins de 300, 500 kg cada. Sailfish em abundância. Impressionante! O sailfish em formato elegante com hidrodinâmica para velocidade, colorido num azul metalizado com aquele bico e a vela que lhe dá o nome enquanto vivo é lindo. Perde a cor e a beleza ao morrer. Como num protesto fúnebre recolhe a vela e se veste de preto. O marlin, um monstro que demonstra sua enorme potência saltando da água e horas depois de preso pelo estômago se rende ao bicheiro. Foi um misto de emoções para mim.


Certa vez, a lancha ficou no meio de um cardume gigante de Dourados. A primeira vítima foi fisgada no corrico com vara, carretilha, anzol normal, isca... Esse foi mantido na água ao lado da lancha para manter os outros por perto. O cardume se estendia por todos os lados numa distância a perder de vista. Os peixes em frenesi atraídos por um caldo de sardinhas lançado ao mar mordiam qualquer coisa que passasse na frente, inclusive os anzóis sem nada, ou seja, sem isca! Para os pescadores era só puxar o bichão para dentro! Os grandes anzóis eram presos à uma linha curta com um toquinho de madeira na outra ponta para segurar equilibrado na mão com a linha entre os dedos e não tinham a farpela que normalmente impede o anzol de soltar, de modo que quando o peixe se debatia, já na praça de pesca da lancha, o aparato era automaticamente liberado para ser novamente jogado na água. Em pouco tempo a lancha, uma Carbrasmar de 41 pés, estava lotada de peixes. Assim como o sailfish, o dourado também faz seu protesto fúnebre, passando de um dourado incrível de lindo enquanto vivo para uma cor pálida e sem graça ao morrer.


José Francisco e os dourados da Lancha Penélope


Com esta cena de abundância na mente, quando eu já tinha uns vinte e poucos anos de idade, resolvi um dia sair para pescar no meu veleiro de oceano. Meu “navio” era um Cruiser 23' chamado Taai-Fung.

Me equipei para a matança com tudo de primeira qualidade emprestado pelos pescadores do clube. Além do equipamento, também tive ajuda com a escolha das melhores iscas, local de pesca e aulas de como manusear as sofisticadas carretilhas, como iscar o farnangaio no anzol e tudo mais.

O farnangaio é um peixinho tido como excelente isca para grandes peixes, e eu tinha alguns bem frescos para atrair os mais espertos. Também levei lulas e iscas artificiais diversas.


O Taai-Fung nesta época estava sem motor e como o local do pesqueiro indicado era bem longe, saí na tarde do dia anterior e já fui velejando até a praia de Itaipu onde fundeei para dormir ansioso com o dia seguinte. De madrugada, quando entrou o vento terral, levantei âncora e fui subindo junto à costa aproveitando o vento. Aqui no Rio de Janeiro a costa é na direção leste-oeste, então, quando dizemos que subimos a costa é na verdade no sentido de oeste para leste, nada para cima. Ao amanhecer já estava com as linhas na água em boa velocidade, com vento de nordeste e já na água clara, onde supostamente estariam os peixes.

O corrico é uma técnica de pesca aparentemente simples: o barco navega a uma determinada velocidade arrastando uma ou mais iscas. Estas imitam uma presa. Pronto! A complexidade está em acertar a velocidade, a distância da isca, o tipo da isca e o melhor local.

O Taai-fung não tinha motor, mas tinha um leme de vento, o que permitia que eu sozinho ajustasse as velas, pescasse, comesse e descansasse sem a obrigação de ficar no leme.
Eu mesmo construí o leme de vento utilizando eixo de roda de bicicleta, polias de madeira, tubos de alumínio e nylon de vela balão. Funcionava perfeitamente com o vento pela proa. Com o vento de popa e onda era necessário descer a vela grande e subir 2 velas de proa, uma para cada bordo, numa combinação confortável chamada de twin jibs. Mesmo assim, quando o barco muito leve descia numa onda o leme de vento vacilava.
Para quem não conhece vale explicar de forma simplificada que o leme de vento é uma espécie de piloto automático usado em veleiros que usa a força do vento para direcionar o barco.

Com o vento nordeste fui abrindo aos poucos da costa mesmo com o risco de encarar mais correnteza contrária. O importante era pescar!
Ao final da manhã o nordeste começou a rondar para leste empurrando o Taai-Fung mais pra fora ainda. E nada de peixes. A velejada, no entanto, era confortável. Aquele marzão azul em volta e o vento na medida certa, nem forte nem fraco. E o barco seguia seu rumo sem destino. De vez em quando trocava as iscas, regulava as velas, descascava uma laranja… e assim foi passando o dia. Eu lá no meu mundo desprovido de qualquer problema, exceto a falta de peixes.

No início da tarde o vento deu uma diminuída de intensidade e entrou de sueste. Prontamente cambei o barco e continuei orçando o que pude. Estava sob uma faixa de nuvens. Com o novo vento ficou melhor ainda. Já estava cansado de ficar com o pescoço virado para a esquerda. Com as marolas vindo diretamente contra o barco o avanço ficou mais confortável com menor balanço. E nada de peixes!

O sueste durou pouco e voltou para leste e a proa agora apontava para a Ilha de Cabo Frio, única parte de terra à vista. Já estava rebocando as iscas há horas, sem um destino certo, mas agora, com a proa na Ilha de Cabo Frio, ficou claro que era para Arraial do Cabo que eu deveria ir. E lá fui eu! Com o sol se pondo identifiquei a passagem do Boqueirão e comecei a velejar com mais “pressão” para chegar com luz do dia.

A entrada do boqueirão a vela nem sempre é fácil. Ventos e correntes não dão mole por lá. A passagem é funda e estreita, afunilando a correnteza e a altura dos morros em volta mudam a direção do vento. O plano B seria voltar para Niterói. Mas neste dia foi tranquilo e a preocupação da entrada deu lugar ao visual deslumbrante da praia da Ilha do Farol onde fundeei para passar a noite.

Exausto do longo dia, lampiões acesos, limpei e cortei as lulas em rodelas e comi as iscas no jantar. Uma delícia que os peixes recusaram.
O Taai-Fung tinha um fogão à álcool pressurizado que fazia um barulho peculiar guardado na minha memória. Também fui eu que fiz o fogão utilizando o bico doado por meu amigo Léo, uma chapa de aço inox, um barril de aço inox desses de máquina de refrigerante como reservatório do álcool e uma bomba de encher pneu de bicicleta para pressurizar o sistema. Tenho saudade deste fogão. As coisas mais simples são as que dão o maior prazer.

A tranquilidade da noite foi interrompida por um vento nordeste forte. Hora de zarpar!
Subi o grande rizado para facilitar a manobra. Com o grande inteiro o barco tinha dificuldade de manobrar, tendia muito para a orça. Com o grande reduzido o centro vélico se desloca para vante garantindo o controle. E lá fomos nós (eu e o barco) como uma flecha pelo boqueirão na madrugada escura. Dá um medo as vezes, mas só quando você tem tempo para isso. O inesperado, a escuridão, a solidão. A silhueta das pedras. Será que está perto? Um barulho diferente, o risco do jibe numa rajada… Lanterna que não acende, carta náutica dobrada difícil de identificar. Tensão total! Orça, arriba! Grito eu para mim mesmo.

 O convés salgado do dia anterior com o sereno da noite deixou tudo molhado. A carta náutica, as roupas que se esfregam no convés.
De vento em popa virei escravo do leme, no entanto o rumo era direto pra casa e a velocidade boa.
Agora estava mais para velejador do que para pescador e quando deu, já com o sol brilhando, as linhas foram colocadas na água com iscas artificiais. 

Para me livrar do leme orçava um pouco e acionava o leme de vento.
O nordeste foi dando lugar ao leste. Uma vela balão substituiu a asa de pombo e a ansiedade da chegada era maior a cada milha. Os pontos estimados eram marcados na carta náutica sem nenhuma precisão, mas numa frequência que tornava a posição segura. Com tudo a mão no cockpit fui passando rapidamente pelos lugares do dia anterior. Rápido em comparação com o dia anterior, é claro! Num 23 pés nunca é rápido!

E o dia se passou, cansativo, preso ao leme, e já não lembrava mais do objetivo da pesca quando, passando entre as ilhas Pai e Mãe, bem pertinho de casa, a carretilha cantou! Era um peixe espada. Um peixe fino, esguio, quase sem carne. E dos pequenos ainda por cima. Trouxe o coitado para dentro e com cuidado para não levar uma mordida, a cana de leme entre as pernas, devolvi o bicho para a água.

Ao chegar no clube um sócio me perguntou. E aí, foi a Itaipu? 
Sim, fui. Respondi. 
Tava bom lá? 
Tava ótimo. 
E diante das varas de pesca perguntou: Pescou alguma coisa?
Nada, mas dei uma ótima velejada!


O Taai-Fung e seu leme de vento (sem a vela), aqui na foto com motor de popa.