sábado, 18 de janeiro de 2020

Veleria raíz

Outro dia recebi de um amigo por WhatsApp um vídeo do processo de acabamento
de confecção de uma vela de barco à moda antiga. O Vídeo é do Hardanger
Maritime Centre and museum, uma das maiores redes de especialistas em
restauração de embarcações nos países nórdicos. Arte naval pura!


“Veleria raíz”, dizia o comentário do meu amigo.


Lembrei logo de Jack Wedekind!


Em 1986 eu parti para uma aventura nos Estados Unidos e lá arrumei emprego na
Wedekind Sails and Canvas CO, a veleria do Jack.


Jack, que nesta época já tinha mais de 50 anos de idade, cresceu no meio dos barcos
do norte de Long Island - NY. Mais tarde, como uma extensão de um fascínio já
estabelecido por veleiros clássicos, se aperfeiçoou nas técnicas tradicionais de “sailmaking”
numa veleria na Europa. No início da década de 70 montou sua própria veleria em
Port Jefferson - Long Island, lugar cheio de histórias e tradições da época da pesca
da baleia e da navegação a vela. 


  


Na veleria a maioria das velas que confeccionava-mos eram para barcos clássicos ou
de cruzeiro longo, muitos com casco de madeira ou aço. Alguns armados em Gaff Rig
com um enxoval extenso de velas. As vezes eram feitas de um dacron pesado marrom.
Na época esta era a cor ideal para aquelas tripulações que ficavam longos períodos
olhando para as velas dos barcos sem ofuscar ou cansar a vista com a grande reflexão
do habitual tecido branco. O acabamento das velas era rebuscado, repleto de costuras
a mão e couro. Um trabalho de artesão que conferia às velas um aspecto clássico antigo.


Um acabamento similar era conferido às capotas que, diferente do que acontecia aqui
no Brasil, eram valorizadas, feitas com técnica e orgulho.




Num canto da fábrica tinha uma bancada de veleria antiga, uma relíquia de 200 anos de idade.
Nesta bancada de madeira havia buracos de embutir ilhoses de vários tamanhos; os
batoques de madeira cônicos com os rebaixos para enfiar os ilhoses de latão; ferramentas
de costura em couro como agulhas, sewing palms e linha encerada; martelos de madeira;
alicates especiais e agulhas para costura em cabo. Uma caixa grande de madeira com
divisões guardava sem muita organização acessórios e insumos de veleria do passado
como garrunchos, argolas e ilhoses de latão. Uma volta ao tempo.


É claro que eu mergulhei fundo nisso tudo e por muito tempo achei que aquela cicatriz no
dedo indicador direto, resultado das inúmeras esticadas na linha encerada sempre no
mesmo ponto, seria permanente.


Jack dominava a arte como ninguém. Ele era chamado para apresentações em eventos
da tradição marinheira onde demonstrava exatamente estes processos do vídeo. Montava
um estande de exposição com a tal bancada, uma vela pesada antiga de tecido de algodão
grosso encerado, cabos trançados antigos e, vestido a caráter com roupas da época,
avental de couro, grandalhão, brancão, com barba e cabelo grisalhos, demonstrava a
trabalheira que dava para costurar a mão cabos trançados no tecido, punhos de couro
e toda uma gama de arte naval com habilidade incomum. Um gole de Rum de vez em
quando completava a caracterização.


Em 1989 o prédio no porto que abrigava a veleria foi vendido, obrigando Jack a mudar
para outro ponto em Port Jefferson Station. Com a mudança as encomendas ficaram
atrasadas então Jack me convidou para ajudar. Trabalhei por mais 4 meses neste ano
quando então o foco estava nas capotas, não mais nas velas. Mesmo assim, fizemos
um workshop da arte antiga de confecção de velas em Sag Harbor, leste de Long Island.
O evento comemorava os 200 anos da casa da alfândega local.




Registros fotográficos no meu álbum.


















Custom House em Sag Harbor


A Custom House fica ao lado do do museu histórico e da atividade baleeira.



Arte naval raíz!

quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

Desafios e conquistas



Morro do Pão de Açúcar do Mamanguá





Com os barcos fundeados na frente da entrada da trilha na Praia do Cruzeiro subimos

o Morro do Pão de Açúcar numa manhã ensolarada acompanhados da tripulação do

veleiro Lady Lou.















Cada um com seu desafio: Tiago subiu reclamando do esforço, sendo necessário

incentivá-lo a cada instante para que não desistisse. Ana Cláudia com seu medo de

altura ansiosa com a “hora da pedra” e eu preocupado com a descida.


É que por alguma razão que não sei explicar, na descida, quando geralmente a

sensação é de alívio, para mim é de suplício. Minhas pernas sofrem. Incrível!

Pode ser que isso tenha alguma relação com um grave acidente de moto que sofri

quando jovem, mas o fato é que para a maioria “para baixo todo santo ajuda”, mas

eu desço as trilhas gradativamente perdendo as forças até ficar com as pernas

bambas. Mesmo uma trilha fácil como a do Pão de Açúcar.


A trilha é realmente fácil. As raízes da mata fechada formam degraus perfeitos de

uma escadaria e os galhos servem como corrimão. Subimos descalços sem

problemas com os chinelos nas mãos para o caso da pedra estar quente.

Sem pressa, a não ser pelo Caio que, demonstrando sua disposição juvenil, foi

rápido na frente, em coisa de uma hora de caminhada tranquila, incluindo pequenas

pausas para descanso e hidratação, já estávamos lá no topo.


A sensação de atingir o cume é empolgante. Para Ana Cláudia uma vitória pessoal.

O medo de altura sempre foi para ela um impeditivo para curtir a paisagem de

lugares mais altos e algumas tentativas frustradas de subir o Costão da Praia de

Itacoatiara, uma pedra perto de casa bem mais baixa do que essa de Paraty,

comprovaram a intensidade do tormento.


Mas desta vez estávamos acompanhados de Andrea e Martine Grael. As duas

foram fantásticas e ajudaram Ana Cláudia a superar a fobia com técnica e

talento: Trabalhando carinhosamente detalhes como respiração e postura,

progressivamente ela foi sendo encorajada a enfrentar o medo e ir subindo.

Ao chegar no cume foi gradativamente passando por um processo de adaptação,

desfazendo-se do estado de alerta parecendo uma estrela do mar agarrada

firmemente à pedra, para uma reação equilibrada e, por fim, confortável quase

que como se estivesse na sala de casa. Super!


Que beleza começar o ano superando um desafio desse!













A estonteante vista é uma recompensa. De lá do alto dos quase 440 metros é possível

observar a geografia peculiar do Saco do Mamanguá, nosso único Fiorde Tropical, a

Reserva Ecológica Estadual da Juatinga com a exuberante vegetação da Mata Atlântica

e os gigantescos manguezais.


Os barcos fundeados lá embaixo pareciam menores ainda diante da imensidão em volta.






Na descida não foi nada diferente do que eu previa: Ana Cláudia e Tiago, felizes e

orgulhosos de terem superado seus próprios limites, foram me zoando enquanto eu,

com as pernas frouxas, como se com folga nas juntas, descia me agarrando aos

galhos da mata para não despencar de vez.


Mas a dor e a troça foram preço baixo a pagar pelo maravilhoso passeio

entre amigos e família e uma verdadeira pechincha contra a constatação do progresso

de Caio, que há poucos anos se arrastava aos prantos para fazer pequenas

caminhadas e agora faz sem esforço ou lamento; a conquista e alegria do Tiago te ter

concluído o desafio da subida e, sobretudo, a façanha de Ana Claúdia de ter ficado

de pé, poderosa sobre o topo do Mamanguá!