sábado, 27 de janeiro de 2024

Bill the person

Bill the cat e Bill the person


Em um dos períodos que trabalhei na Wedekind Sails & Canvas em Long Island - NY, conheci um descendente de Irlandeses chamado Bill Verity. Eu e Jack Wedekind  o chamávamos de Bill the person. O motivo é que havia na casa do Jack (onde eu fiquei hospedado) um gato também chamado de Bill. Então… para melhor identificação, convencionamos chamar um de Bill the cat e outro de Bill the person. 


Bill the cat era um gato chato! Enquanto a gata “Ice Cream” caçava camundongos, cobras e outros animais (colocando-os sobre a cama do casal Jack e Elena para mostrar serviço), Bill só ficava descansando, pedindo carinho e atenção. Quando muito corria da cadela beagle “Olive Oil”!


Bill the person também não era uma pessoa agradável: Na época estava um tanto decrépito. Apesar de não ter muita idade, parecia um mendigo velho sujo. Eu achava que ele morava dentro do seu carro, sem grana e, como Bill the cat, pedindo favores e atenção. Eu também desconfiava que ele dava entrada no hospital fingindo uma doença para um período de maior conforto. Em suma, minha impressão era de uma pessoa a se evitar. 


Bill aparentemente não tinha nada pra fazer, portanto fazia ponto na empresa de Jack para passar o tempo e contar histórias. E que histórias! O passado de Bill era incrível, quase inacreditável! Jack confirmava os fatos, o que me deixou cada vez mais curioso. Daí passei a convidar o “cara” para almoçar em troca de escutar os contos. Bom… claro que ele transformou isso numa rotina quase que diária e eu paguei diversos sanduíches x histórias. Valeu cada centavo!


O velejador aventureiro


Foi fácil ficar empolgado com os relatos de aventuras inimagináveis que aquele velejador realizou. Do status de “pessoa a se evitar”, passei a procurá-lo, ansioso para escutar mais um capítulo das muitas aventuras disponíveis para serem contadas. 

Tudo estava documentado e organizado em enormes fichários recheados de recortes, revistas, jornais e fotografias que ele carregava para os encontros.


Resumidamente ele atravessou seis vezes o Atlântico (3 solo). Numa dessas travessias estabeleceu o recorde do menor barco a cruzar o oceano Atlântico, navegando da Flórida  à Irlanda num 12 pés. Atravessou também duas vezes o Pacífico, sendo uma vez solo numa espécie de baleeira aberta de 23 pés! 


Em 1989 eu ainda era jovem e inexperiente. Hoje tenho o mérito (conhecimento, habilidade e atitude) de conseguir navegar em segurança pra onde eu bem entender. Tenho orgulho de possuir e poder manter um veleiro. Satisfação de curtir a privacidade, paz, independência, liberdade e equilíbrio que uma boa velejada me proporciona. Devo isso em boa parte às histórias que eu escutei, os livros que li, as experiências que vivi. Sem dúvidas essa contribuiu!


Naquela época, não havia a facilidade de registrar as coisas como as proporcionadas pelo celular hoje em dia. Apesar de ficar fascinado com os relatos, não tirei nenhuma foto com Bill, não anotei nenhuma linha do que ele me contou. Uma lástima! Tudo que tenho para contar agora neste texto está guardado em minha cabeça por décadas. De certo eu refresquei minha memória procurando artigos na Internet, mas como Bill fez pouco ou nenhum marketing das aventuras e todas as histórias contadas são das décadas de 60 e 70, não tem muita coisa publicada na The World Wide Web.


Recorde de travessia do Oceano Atlântico no menor barco


Bill era carpinteiro/construtor naval em Long Island - NY. Sem muita pretensão de ganhar fama, construiu um veleiro de apenas 12 pés e em 1966  atravessou o Atlântico da Flórida nos EUA até a Irlanda com ele, batendo o recorde de travessia do oceano no menor barco. O recorde anterior havia sido conquistado apenas um ano antes, em 1965, pelo famoso Robert Manry com o seu “ Tinkerbelle“, de 13,5’.

Bill não era aguardado na Irlanda quando chegou depois de 65 dias de mar com seu barco chamado Nonoalca. Assim, teve dificuldades até de provar seu feito.


Imagine as circunstâncias: A primeira regata transatlântica em solitário foi em 1960

Chichester só partiu para sua famosa circum-navegação em 1967.

A largada da Sunday Times Golden Globe Race só foi em 1968–1969.

Difícil de acreditar naquela época que um doido num barquinho minúsculo pudesse ter chegado na Irlanda vindo da Flórida! E sem promoção ou divulgação de tamanha proeza! 


O então novo recorde foi reconhecido.


Robert Manry quando chegou com o Tinkerbelle na Inglaterra no ano anterior ao que Bill bateu seu recorde, foi recebido por uma multidão, autoridades e família. Bill Vetity sequer era aguardado! Faltou marketing!


São Brandão, o Navegador


Os irlandeses celebram a crença de que Saint Brendan, the navigator, foi o primeiro europeu a chegar à América do Norte quando ainda no século VI estava navegando em busca da terra prometida. 


Mil anos depois… Cristóvão Colombo ao partir na viagem na qual “descobriu” a América, disse: “Vou em busca da terra prometida de São Brandão!”


Maluco que só, Bill depois da façanha de ter atravessado o Atlântico no 12 pés, resolveu comprovar a teoria de que seria possível chegar na América com a tecnologia do século VI partindo da Irlanda. Para isso, estudou a fundo a construção naval medieval e as histórias de São Brandão em busca da terra prometida. 

Na sequência, angariou fundos para construção (com as próprias mãos e ajuda de 2 jovens) de uma réplica em escala do barco batizado de St Brendan. Construiu em escala, com 20 pés de comprimento, pois queria fazer a travessia em solitário e o barco original, supostamente de 40 pés, seria muito grande para manobrar sozinho.

Partiu em 1969 e alcançou as Bahamas depois de 118 dias de mar.

Pouco antes de chegar em terra resolveu lavar as roupas. Deveria estar muito fedido! Então, amarrou as roupas num cabo e as lançou pela popa. Uma espécie de lavadora de roupas automática. Um tremendo vacilo e as roupas se foram! Putz!

Quando chegou em terra (não me recordo se com alguma roupa) consultou um guarda para saber onde registrar a chegada… imigração etc. 

O guarda perguntou - De onde você vem?

- Da Irlanda, disse Bill

- Nesse barco? Impossível! Cadê sua tripulação?

- Eu os comi!!


Lembro ainda da gargalhada de Bill contando esse episódio: I ate them! Hahahahaha! I ate them! Hahahahah!


Resultado da brincadeira, Bill foi levado preso!

Poderiam muito bem tê-lo levado para um hospício, diria.







Travessia solitária do Oceano Pacífico num barco aberto


O motim no navio da Marinha Real HMS Bounty ocorreu no Oceano Pacífico Sul em 1789. Tripulantes insatisfeitos liderados pelo imediato assumiram o controle do navio do capitão William Bligh.

O capitão Bligh e 18 membros de sua tripulação foram abandonados num bote aberto de 23 pés no meio do oceano Pacifico. Heroicamente Bligh navegou mais de 3.500 milhas náuticas com poucos recursos e quase nenhum mantimento até um local seguro. 



E lá foi Bill the person para uma nova aventura!

Bill construiu a réplica do bote do Bounty na costa leste dos EUA e o levou por terra para o Pacífico onde iniciou sua outra ousada travessia solitária.

Jack Wedekind fabricou uma cobertura de lona para o convés.

Essa passagem Bill não teve tempo de me contar com detalhes, mas lembro vagamente de que no trajeto Bill parou numa ilha habitada por uma tribo. A filha do chefe da tribo se apaixonou por ele e foram morar na Califórnia. Claro que não deu certo! Mas a travessia sim, essa foi completada com sucesso.


Foi embora


Um dia chegou um envelope na veleria endereçado ao Bill. Nele tinha um bilhete de passagem aérea para a Irlanda. Disse-me que o IRA mandara. 

Daí veio uma proposta que eu recusei: Bill me ofereceu seu carro.

Era para que eu o levasse até o aeroporto e depois ficasse com o carro pra mim. Uma doação. Bastava eu bancar o combustível. Caso contrário ele iria abandonar o carro com tudo no estacionamento pois não voltaria mais aos EUA.

O carro era um ferro velho amarelado, mas andava. Tinha aqueles tapetes de forração peludos todos sujos e desgastados que cobriam bancos, painel e tudo mais. Fiquei com medo e recusei a oferta. Bill viveu uma vida de riscos e desapegos… que risco ele estaria correndo com aquele carro? 


Pesquisando para escrever este texto descobri que ele morreu naquele mesmo ano de 1989 na Irlanda.


“Fui nascido e criado nesse negócio de barcos. Para mim é uma profissão que tenho capacidade para realizar. Às vezes a privacidade é gratificante. É um bem inestimável e acho que, quando a situação está ruim, só há uma pessoa em quem você pode confiar — e essa pessoa é você mesmo.

É emocionante quando termino a viagem e desembarco. Gosto de conceber uma ideia e um pensamento original, juntá-los e realizá-los – isso é emocionante.

Muitas pessoas gostariam de fazer as mesmas coisas, mas eles não pagarão o preço de romper com a conformidade.

Uma vez que você sai da conformidade do trabalho diário, você fica contaminado e nunca mais volta a fazê-lo – você nunca mais vai querer voltar a fazê-lo. Acho que a recompensa de tudo isso são as pessoas que conheci e com as quais nunca teria entrado em contato – conhecer pessoas de todas as esferas da vida.”

Bill Verity em entrevista para o The New York Times.


Fica registrada essa pequena contribuição à biografia desse extraordinário e pouco conhecido velejador.




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